5.8.12

who'll pay reparations on my soul?

Acho que preciso falar disso agora, que passei a régua na conta. Foram dois pagamentos. Um de 5.2k e outro de 3.6k. Tudo em dentes novos pra minha boca.

Eu.

Filho da dra. Cláudia, cirurgiã dentista.

Casa de ferreiro, espeto de pau.
Minha mãe consertou até onde deu, que foi até eu não aparecer mais no consultório. Eu deixei de aparecer lá em 1997, que foi quando, pela primeira vez na vida, tive que lidar com uma coisa chamada "pressão no trabalho".

O consultório era do lado do trabalho. Do lado. Uma estação de metrô entre um e outro. Dez minutos de caminhada, mas, na época, eu tinha carro e, por isso, não andava a pé. Burro assim.

Sim.

Eu tinha 22 anos.
E era burro assim.
Mas eu fiquei esperto e aprendi.
Corri atrás, fiz tudo que pude, o melhor que pude e salvei minha pele. Só fui sair de lá uns anos depois e tiveram que botar três pessoas pra fazer o que eu fazia. Lembro que botaram uma menina e ela ficou só uma semana. Pediu as contas e disse "vocês são loucos".

E éramos loucos.

Lembro direitinho da virada: foi quando o chefe saiu de férias. No primeiro fim de semana sem ele, foi um vendaval de bosta. Até quem nunca cagou, deixou seu trôço morninho flutuando no ar.

A minha foi monstra.

Ia ter show de uma banda que nunca tinha vindo pro Brasil e eu botei um anúncio no ar com as datas dos shows - uma pra julho e outra pra agosto.

As duas no MESMO anúncio.

O vice-chefe chegou na reunião na segunda e eu fui achando que ia todo mundo pra rua. Se não todo mundo, certeza: eu ia pra rua.

Não fui.

A reunião foi justo o contrário. O vice-chefe chegou e disse: "o chefe saiu. A gente tá no terceiro lugar. Imagina se, quando ele volta, a gente tá em quarto? Ele nunca vai poder sair de férias? Vamos devolver isso aqui pra ele EM SEGUNDO".

A gente foi e devolveu aquilo lá em segundo.

Eu não perdi o emprego, mas nunca mais fui ao dentista.

Demorei uns dez anos até sacar que não tinha mais conserto. Sei que eu digo pra todo mundo que quebrei os dentes quando caí da cachoeira.

Isso é mentira.

Inventei isso porque ninguém ia acreditar se eu dissesse que deixei de ir ao dentista que, no caso, era MINHA MÃE! Foi isso, no entanto, que eu fiz.

Cair da cachoeira, em novembro de 2002, era a desculpa que eu precisava.

Na real, EU fiz isso comigo e com meus dentes e não: não reclamo.
Existe uma justificativa que serve pra tudo e serviu naquele momento: eu era jovem e precisava do dinheiro.

Eu sou velho agora.

Os 9k vão me fazer falta agora em que, pela primeira vez em uns 10 anos, vou tirar férias. Mas foda-se. A dívida tá paga.

Eu troquei dentes por dinheiro e, agora, troquei dinheiro por dentes.

O que eu, velho, digo é o seguinte: não adianta nada chicotear mais os cavalos que estão puxando uma carroça sem rodas. Entenda isso como quiser, mas, por favor, entenda.

Os cavalos são como essas crianças burras de 22 anos, dispostas a morrer por amor. Eles ainda acreditam em todo tipo de amor e, entre eles, esse: "amor ao trabalho".

Eles são jovens e precisam do dinheiro.

 E foi com gente como nós, velhos, que eles aprenderam a amar o dinheiro.

A gente fez com que eles acreditassem em trabalho por amor como quem confunde amor e sexo.

O amor que você tem é igual ao amor que você dá: eu acreditei nisso também.

Eu dei meus dentes por amor ao trabalho e, depois de velho, comprei meu amor de volta por 9 mil reais.

Tem criança por aí vendendo mais por bem menos e acho que é nossa responsa cuidar delas, porque, senão, já sabe: elas morrem por amor e, cada vez que uma delas morre, a gente morre junto também.

A culpa é nossa.
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